Para que não se esqueça. Para que nunca aconteça. Por uma sociedade sem manicômios! - Psicólogo Bruno Wisniewski - CRP 08/24791

Para que não se esqueça. Para que nunca aconteça. Por uma sociedade sem manicômios!

Postado em 31/05/2021 01:25 - Edição: Bruno Wisniewski

Texto escrito por: Lorena Maria da Silva (CRP-08/22083), Maynara Helena Flores (CRP-08/24595 – CDH Sede Maringá) e Roselania Francisconi Borges (CRP-08/06008 – Docente da Universidade Estadual de Maringá).


A frase do psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980), mentor maior da reforma psiquiátrica italiana e grande inspirador da reforma psiquiátrica brasileira, é o que move as ações da Luta Antimanicomial. O Dia Nacional da Luta Antimanicomial, 18 de maio, nos traz à memória a histórica luta para a consolidação dos direitos às pessoas em sofrimento psíquico e a garantia do cuidado em liberdade e no seio da comunidade. Instituída no ano de 1987, na I Conferência Nacional de Saúde Mental, em Brasília, a data marca o embate feito pelos movimentos de Trabalhadores em Saúde Mental contra o modelo de assistência centrado nas internações em hospitais psiquiátricos. Com o lema “Por uma Sociedade sem Manicômios”, a Conferência apresentou propostas que orientaram as mudanças estruturais na gestão pública e redefiniram a lógica do cuidado à saúde mental.


Discorrer sobre uma nova rede ou lógica de atenção em saúde mental implica no resgate dos caminhos construídos até aqui, já que muitos foram e ainda são os desafios para a permanência dos direitos conquistados. A lógica manicomial, isto é, o cuidado em saúde mental por meio da retirada da comunidade e inserção em hospitais psiquiátricos, não é uma particularidade deste momento histórico. O pesquisador da Fiocruz, Paulo Amarante, destaca que o surgimento dos manicômios e da lógica de isolar para o cuidado advém do século XVIII com o médico francês Philippe Pinel, que sob os ideais da Revolução Francesa buscou corrigir as desordens da razão por meio do “tratamento moral”, ou seja, do enclausuramento dos considerados “alienados”.


Após a Segunda Guerra Mundial e as denúncias em relação às violências ocorridas dentro dos hospitais psiquiátricos, várias foram as tentativas de repensar o cuidado à loucura e formas de humanizar os manicômios (psiquiatria de setor, psiquiatria preventiva, psicoterapia institucional, etc.). Entretanto, não bastava a extinção dos leitos psiquiátricos, mas o enfrentamento ao conjunto de saberes, culturas, práticas científicas e sociais institucionalizadas para além das estruturas físicas.


No Brasil, a Reforma Psiquiátrica é fruto do seu tempo. As experiências italianas, com Franco Basaglia na década de 1960, as lutas travadas pelo direito à saúde universal com a Reforma Sanitária, no Brasil, na década de 1970 e os movimentos sociais que pediam pela redemocratização do país no início da década de 1980, foram alguns dos marcos históricos que abriram os caminhos para o fortalecimento da Reforma Psiquiátrica brasileira e seus feitos posteriores. A promulgação da Lei 10.216/2001 que dispõe sobre os direitos das pessoas em sofrimento psíquico e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, foi um dentre os muitos resultados da Reforma.


Aliada ainda à Reforma Psiquiátrica e ao movimento da Luta Antimanicomial, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída pela Portaria n.º 3.088 de 2011 do Ministério da Saúde (MS), apresenta os pontos de atenção e cuidado a pessoas em sofrimento psíquico e orienta a implantação de um modelo de base comunitária, garantindo a livre circulação dessa população nas cidades e nos espaços públicos. Vemos assim, que muitas foram e são as conquistas que devem ser lembradas e celebradas no dia 18 de maio, porém, estas não estão garantidas. O psiquiatra e militante pelos direitos das pessoas em sofrimento psíquico, Pedro Delgado, em seu artigo “Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte”, aponta que desde 2016 tem ocorrido um permanente processo de desinvestimento nas políticas públicas acarretando impactos na política de saúde mental. O reajuste no valor das diárias dos leitos psiquiátricos, a ampliação do financiamento às comunidades terapêuticas e a Nota Técnica MS n.º 11 de 2019, que instituiu mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes na Política Nacional sobre Drogas, foram algumas expressões dos retrocessos ocorridos.


Inspeção Nacional dos Hospitais Psiquiátricos

No ano de 2019, o Relatório de Inspeção Nacional dos Hospitais Psiquiátricos – ação interinstitucional organizada pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) – exemplificou os muitos desafios que ainda se apresentam para o enfrentamento da lógica manicomial.


O Relatório apresenta a inspeção de 40 hospitais nas cinco regiões do país, sendo estes selecionados com base em um conjunto de critérios previamente definidos, bem como, as categorias de análise do cuidado e atendimento ofertado. O Hospital Psiquiátrico de Maringá (HP) foi um dos hospitais selecionados e inspecionados no estado do Paraná, juntamente com o Hospital San Julian em Piraquara, dentre os 131 em funcionamento no país que são financiados com recursos do Sistema Único de Saúde (Relatório de Inspeção, 2020).


Hospital Psiquiátrico de Maringá

Dentre as diversas inadequações encontradas no Hospital Psiquiátrico de Maringá e apresentadas no Relatório de Inspeção, a estrutura arquitetônica foi um dos pontos destacados, tendo em vista que mais da metade dos hospitais inspecionados foram inaugurados ao longo do regime militar – período de grande expansão dos leitos psiquiátricos no país – apresentando uma arquitetura própria desse período, com muros altos, diversos blocos sendo separados uns dos outros com fechaduras e trancas, dificultando o acesso e o livre trânsito dos usuários, como cita o próprio Relatório de Inspeção: “De forma geral, observou-se que o edifício do Hospital Psiquiátrico é uma construção antiga e arquitetonicamente inadequado às finalidades terapêuticas e de reabilitação psicossocial. Muitos níveis de edificação e em diferentes blocos compõem o prédio, tornando a estrutura construída complexa e de difícil acesso e trânsito. Tudo isso sob funcionamento de trancas e fechaduras.”


Apesar de o modelo arquitetônico do Hospital Psiquiátrico de Maringá ser inadequado e levar a episódios de violação de direitos, uma nova ou adequada arquitetura não eximiria essa instituição da sua histórica lógica de cuidado manicomial – isto é, o cuidado por meio do isolamento da comunidade – e ainda acarretaria danos a longo prazo.


A insuficiência ou ausência de insumos para a higiene pessoal foi outra característica observada no Hospital Psiquiátrico de Maringá. O compartilhamento de materiais de higiene pessoal – como o armazenamento irregular de escovas de dentes, por exemplo – coloca a saúde de usuários em risco, além de acarretar prejuízos a sua autonomia e individualização. É preciso considerar que impedir a autonomia e a liberdade para o exercício do autocuidado constitui-se uma violação dos direitos relacionados à saúde. Indo além, em meio à pandemia da Covid-19, o compartilhamento de objetos de higiene pessoal e o controle sobre produtos de higiene podem levar à transmissão do vírus e ao favorecimento do contágio entre os usuários, como já foi notado por meio do Boletim COVID-19 da Secretaria Municipal de Saúde de Maringá. Na segunda-feira, 18 de maio, dia da Luta Antimanicomial, foram confirmados 18 casos neste hospital.


Outra prática constatada no Hospital Psiquiátrico de Maringá e apresentada pelo Relatório de Inspeção (2020) foi a contenção mecânica e química por meio do uso de psicofármacos: “Nas inspeções realizadas foi constatado que o uso excessivo de medicamento ganha sentido e uma função especial para o funcionamento institucional, qual seja: o de controlar as pessoas internadas que desorganizam ou atrapalham a rotina da instituição e se rebelam em face da violência institucional”, afirma o relatório.


As refeições oferecidas nos Hospitais inspecionados, dentre eles o Hospital Psiquiátrico de Maringá, foi outro ponto abordado pelo Relatório. Apesar da presença de profissionais nutricionistas, “observou-se oferta restrita, com cardápio pobre no que se refere à variedade dos grupos alimentares e à qualidade nutricional.” O Relatório ainda destaca, dentre as inúmeras violações de direitos encontradas: a negligência sobre as necessidades alimentares por meio do controle sobre a quantidade de alimentos, impedindo os usuários de repetir refeições e servindo alimentos misturados, “parecendo lavagem de porco” como contaram as pessoas ouvidas pela inspeção.


A inspeção também constatou irregularidade nas condições de trabalho da equipe de profissionais (condições insalubres) e exploração da mão de obra dos internos para atividades laborais. O resultado desta inspeção se desdobra em outras ações para o combate dessas irregularidades, envolvendo não só a violação de direitos dos usuários, mas também ações trabalhistas, que ainda estão ativas e detalhadas no relatório.


Por fim, reafirmamos que a correção das irregularidades supracitadas e outras apresentadas ao longo do Relatório, não torna as instituições psiquiátricas recomendáveis ao cuidado às crises psiquiátricas, sendo preferencialmente indicado, como expõem a Lei 10.216/2001 e a Portaria MS 3.088/2011, o cuidado em serviços comunitários de saúde mental ou ainda em leitos psiquiátricos em hospitais gerais. O Relatório de Inspeção e os atuais retrocessos políticos mais uma vez indicam que os direitos até então conquistados não são intocáveis e exige-se de nós, trabalhadoras(es) do campo da saúde mental, constante embate e resistência por meio da reafirmação dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica. Como bem aponta Pedro Delgado: “a trincheira da resistência está nos serviços territoriais.”


Para saber mais:

Saúde mental e atenção psicossocial – Livro de Paulo Amarante, publicada pela Editora Fiocruz (2007).


Lei 10.210, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília: DF. Presidência da República.


Hospitais psiquiátricos no Brasil: relatório de inspeção nacional – Publicação do Conselho Federal de Psicologia (CFP) em parceria com Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e Ministério Público do Trabalho (MPT).


Hospital Psiquiátrico de Maringá tem 17 funcionários com Covid-19, reportagem de Monique Mangaro publicada na página GMC Online (https://www.gmconline.com.br/noticias/cidade/hospital-psiquiatrico-de-maringa-tem-17-funcionarios-com-covid-19).


Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte, artigo de Pedro Delgado publicado pela Revista Trabalho, Educação e Saúde, 17(2). (https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00212).


Portaria 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: DF. Presidência da República.

Ref.: http://crppr.org.br/